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Ana Gonzaga

Rosário Cardoso







sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Lisbon Revisited por Joana Albino (continuação)

Capítulo II - O AEROPORTO DOS LIVROS
Se eu fosse esse senhor, até me dava por contente pelo facto de eu não me ter posto a cantar e de nem sequer quase ter falado até à Ponte 25 de Abril, porque sou sem dúvida das pessoas mais barulhentas que conheço… Mas sim, passada a ponte, acabou. Aquela vista do Padrão dos Descobrimentos, das casas, dos castelos e daquela imensidão de Tejo dá-me um arrepio pelo corpo todo. Entrámos em Lisboa, passámos os semáforos e as filas todas e eu começo instantaneamente a sentir a electricidade cerebral a funcionar, especialmente quando pela primeira vez passo pela Cidade Universitária e vejo aqueles monstros que são os edifícios das faculdades. Tenho uma sensação parecida ao déjà-vu, mas ao contrário: tantas vezes pensei e repensei na minha futura vida académica!

E o senhor condutor do autocarro, semelhante a muitos outros cultos condutores de autocarros que – ponho as mão no fogo! – devem saber o caminho para todos os estádios de futebol e para todas as tabernas mais conhecidas da capital, não sabia lá muito bem onde era a Biblioteca Nacional e olhou para os edifícios da Universidade e formulou uma pergunta que, na sua cabeça, deveria ser “Qual destes mamarrachos é a Biblioteca?”, mas que, com grande esforço, saiu um “Qual é a Biblioteca?”. A professora Ana, alfacinha, usa o termo que só me lembro ter sido usado na capital, o termo descer. “Não, não é aqui. Tem de descer ali ao Campo Grande e é mais à frente…” Que ultraje Senhor Condutor!

Chegámos à Biblioteca. Saímos do autocarro e eu respirei muito fundo, muitas vezes, porque cheirava bem, cheirava a Lisboa. Depois de ter reparado nas dimensões e na arquitectura estonteante daquele edifício, tive dois pensamentos em simultâneo: preciso de ir à casa de banho e esta biblioteca parece um aeroporto. E realmente, pelo menos em termos de segurança, só faltavam lá os cães, porque para aceder à Biblioteca Nacional é fundamental colocar malas em cacifos que ruminam moedas de um euro. Ruminam porque a comem e depois a devolvem e, se quisermos utilizá-los de novo, temos de colocar lá de novo a moeda.

Depois de irmos à casa de banho e de a guia nos ter quase ido lá buscar ao colo, iniciámos o nosso dia cultural a ver uma exposição sobre Luiz Pacheco, nome que na minha cabeça passou a existir três horas antes, quando a professora anunciou o que iríamos ver... Sim, porque me esqueci de mencionar que a professora Ana, com uma certa bravura, se deu ao trabalho de, às sete da manhã (o período dormente) entregar, uma folha com a sua biografia e com excertos de textos seus (que já depois da exposição vim a ler e realmente gostei muito)!

Luiz Pacheco, que entretanto reconheci pelas fotos, nasceu em 1925 em Lisboa, e foi sempre, segundo o senhor rechonchudo e de óculos exageradamente redondos que nos guiou e a minha excelente percepção, uma personalidade bastante irreverente, o que à partida me cativou logo imenso. Segundo a sua biografia, Pacheco era detentor de um enorme sentido crítico, tinha uma personalidade desconcertante, paradoxal e era “impertinentemente cínico, honesto, paradoxal e desconcertante”.

Seguindo a sua própria filosofia de vida, viveu-a sempre à margem de uma sociedade e de um regime opressor, expressando sempre os seus pontos de vista acerca das suas ideias políticas e sociais, sendo considerado um libertino... Sem nunca dispensar o seu vinho e a sua cerveja, também não se preocupa em esconder a preferência que tinha por raparigas mais novas consegue engravidar três adolescentes e, com tudo somado, ter oito filhos.

A sua vida profissional também nunca foi monótona porque este não o permitia. Começou por trabalhar a escrever para jornais como: O Globo, Afinidades, O Volante, Diário Ilustrado e em 1946 trabalhou como agente fiscal da Inspecção Geral dos Espectáculos, acabando por se fartar das suas funções e se demitir. Através da sua editora, fundada em 1950,a “Contraponto”, Luiz Pacheco torna-se célebre por ter publicado autores como Natália Correia, Vergílio Ferreira, Raul Leal e Herberto Hélder.

Luiz Pacheco morre em 2008, de doença súbita, deixando para trás histórias de uma vida conturbada mas, segundo o que apreendi, sempre vivida de acordo com os seus ideais, as suas escolhas, apesar de ter passado por imensas dificuldades económicas e de ter muitas vezes sobrevivido graças à caridade dos que o rodeavam.

Saí da sala da exposição com vontade de ler alguma coisa deste senhor. A ideia com que fiquei, a de um homem com uma personalidade forte, fiel a si próprio, malandro, directo e rebelde chamou-me mesmo à atenção…

Já sob a orientação de outra guia, bastante comunicativa e dinâmica, fomos esclarecidos acerca dos requisitos para se utilizar as instalações da Biblioteca Nacional, que a médio prazo não me agradam, visto que são necessários 18 anos para consulta de livros e outros documentos... E ao contrário do que acontece em bibliotecas municipais, a Biblioteca Nacional não permite aos seus utilizadores a requisição de livros e nem a consulta despropositada e injustificada de exemplares mais valiosos que são sujeitos a grandes processos de conservação e a delicado manuseamento.

Não muito longe e, avistámos a livraria da Biblioteca Nacional, a Babel. E lá dentro, deparámo-nos com um dos livros, se não o livro mais caro do mundo lá exposto. Um de limitados noventa e nove exemplares. Capa de tecido vermelho e mármore, que pelo que percebi escondia desenhos de Miguel Ângelo… Claro que a nossa vontade era desrespeitar as fitas que nos impediam de tocá-lo e abri-lo e folheá-lo imediatamente. Mas lá nos contivemos. O Rúben ficou encantado com uma edição clone do original de “A Mensagem” que custava quarenta e quatro euros… E eu contentei-me em trazer um lápis oferecido de recordação.

Posto isto, subimos umas escadas e agora a Biblioteca já não parecia um aeroporto. Parecia um hospital. Um corredor sóbrio, claro e comprido levou-nos até a uma sala que nos surpreendeu e espantou a todos. Uma sala de consulta específica para invisuais. Tivemos a oportunidade de conversar com uma funcionária invisual, a Dr.ª Hermínia, que nos explicou o seu trabalho, que é desenvolvido graças a aplicações informáticas adaptadas às limitações causadas pela cegueira. Soubemos também que, numa louvável acção, a Biblioteca Nacional disponibiliza audiolivros e livros em Braille para invisuais, o que lhes permite desfrutar também, nem que de outra forma, do prazer das palavras. Este contacto com esta funcionária foi sem dúvida um dos momentos altos do nosso dia.

Despedidas feitas, continuámos a visita. A guia simpática revelou o número de livros que existem naquele edifício. São, segundo ela, aproximadamente três milhões de livros, ou seja, contas feitas, uma quantidade interminável de letras velhas e novas dentro daquelas muitas paredes e chão e andares.

Descemos novamente as escadas e dirigimo-nos ao fundo geral, uma sala de leitura que alberga calhamaços mais banais e de livre consulta. Sustive a respiração e quando passámos as portas automáticas - que mais pareciam as portas de um supermercado pela quantidade de vezes que abriam e fechavam - respirei fundo e, com o ar, respirei concentração e um incenso de cultura qualquer que por ali pairava. Aquela sala de leitura é um sítio onde vemos, ou onde eu magiquei logo ter visto futuros escritores e futuros best-sellers, munidos de lupas, cadernos e lápis a investigar séculos de história comprimidos em livros e jornais de grandes dimensões, amarelados de capas grossas e vivas. E claro, que com isso tudo, me imaginei ali perdida no tempo daqui a uns anos a ter permissão para consultar exemplares daquele calibre. E vi também pessoas já com uma certa idade – certamente reformados - que, em vez de passarem as manhãs a ver os programas triviais da televisão portuguesa, preferem dedicar-se a investir em conhecimento e passam as suas horas de tempo livre a consultar documentos antigos, quiçá a relembrar velhas notícias do seu tempo.

Andando, demos com a reprografia que actualmente está equipada com máquinas fotocopiadoras meio despidas, sem a habitual tampa, utilizada para não danificar os livros. Ficámos cientes da necessidade e da preocupação com a preservação do espólio para as gerações vindouras.

Mais à frente, vi – e fiquei tão contente por ter visto – aqueles projectores que parecem jogos de vídeo, onde através do filme de documentos de grande valor, podem consultar-se artigos de jornal e outros documentos para que não seja necessário o seu manuseamento.

Terminada a visita, são horas de almoçar. Outra coisa que mês fascinou: funcionários e utilizadores da Biblioteca Nacional nem precisam de sair do edifício para se alimentar: têm a opção de comer num bar ou numa espécie de refeitório, ambos cheios de classe... Como me esqueci de pedir a minha mãe o crédito para comer, acabei por sobreviver à fome graças à minha amiga neozelandesa que me providenciou uma sandes de panado, bastante boa por sinal. Os outros, incluindo as professoras, acabaram por desfrutar de um delicioso manjar, que variava entre bacalhau à Braz e lasanha vegetariana, bem bons! Depois de estarmos de barriga cheia e de termos bebido o cafezinho, saímos do edifício da Biblioteca Nacional e tivemos tempo para conviver e partilhar ideias acerca do que acabáramos de ver. (continua)

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